Noite calma; pai e mãe já em casa prontos para os eventos imperdíveis: jornal e novela! Já temos enorme prática e não sentimos a menor dificuldade em encontrar a boca com o garfo, portanto o jantar não é problema e não requer atenção especial. Crianças ou adolescentes devem se contentar com atenção oferecida no período dos intervalos. A TV funciona como um anestésico. As aflições comuns, diárias parecem arrefecer ante esse milagroso placebo de projeções multicoloridas. As imagens agem em nossa mente como um ópio que amortece a pressão exercida pelas exigências diárias. Um relaxante mental e muscular ou senão uma droga lícita! Exigências de prazos, compromissos, muitos deles indesejados, cronogramas, tarefas que nos extenuam ao longo do dia a tal ponto que nossos próprios pensamentos são banidos para não onerarem o sistema.
Esse é um cenário tão típico, compartilhado por milhares, senão milhões de pessoas que é fácil reputá-lo como normal. Todavia essa normalidade pode ter um preço alto quando vistos pelo olhar das crianças ou dos adolescentes que podem eventualmente necessitar de um algo mais, coisa do tipo: sentir dentro de si algo que soe como aceitação, reconhecimento, valorização; algo como um sentimento de pertencimento! Interromper figuras que nos são tão caras em seu momento de deleite pode ter como resposta um “calaboca!”; um “perumpouco!”; um “agoranão”.
O preço disso pode vir na forma de um boletim cheio de notas vermelhas, na desobediência nossa de cada dia ou somente num olhar apático de pura frustração por não ter saciada sua sede de pertencimento. No caso do boletim, podemos usar para com nossos filhos o mesmo expediente do qual somos vítimas: a pressão! Afinal de contas a vida deles é mole, só estudam, nada mais justo! Tem todo o tempo do mundo. Não são como nós que não temos tempo para nada! Isso é bom para ele sentir na pele como é estar pressionado! Essa parece ser também uma prática normal! Contudo é também a mesma prática que onera o sistema e ai nossos pequenos vão para a rua e acabam por encontrar o simpático grupo de “perto da escola”. Acabam tendo uma boa recepção, boa acolhida e todos percebem que o pequeno está meio acabrunhado, mas nada que um “deixa pra lá vamos experimentar unzinho!” não possa resolver! Depois de experimentar um ele passa a fazer parte do grupo (pertencimento). Se experimentar dois ele é o “o cara” (reconhecimento), se forem três já vira “meu brother” (valorização). Disso, para ele conhecer o fornecedor da parada é um pequeno passo.
Podemos pensar: “Tudo culpa desses vermes desses traficantes!”. Isso também soa bastante normal! Mas fazendo o exercício de buscar enxergar o panorama pela ótica do traficante o cenário pode ganhar outros contornos. Não tendo nascido em uma casa de bacanas; não podendo estudar em colégio de bacanas, que alternativas capitalistas lícitas restariam para esse individuo? Um sub-emprego com uma remuneração pífia que certamente não lhe renderiam uma vida bacana! O meio é competitivo e para jogar o jogo dentro das regras é preciso ficar ao menos um bom tempo sob o jugo dos bacanas para ter uma remota possibilidade de se tornar um. Mas para jogar “fora” das regras muitos dos bacanas (ou ao menos seus filhos!) ficariam sob o seu jugo. Jogo de poder e força, tanto quanto outros tantos que se vêem em outros círculos sociais.
Da parcela de pecado de todos fica então assim acordado que o bode expiatório é o maldito traficante! Esse maldito tão bendito que expia nossa culpa! Esse ser sem face capaz de receber em seu alforje toda a culpa de uma sociedade que troca os pés pelas mãos e já não pode ou não sabe mais abraçar, conversar ou sorrir. Uma sociedade que fomenta a competição e não a cooperação. Que faz do outro mais um inimigo a ser vencido do que um próximo para estender a mão! Que faz de um filho um empecilho ao nosso tão necessário e merecido descanso!