sábado, 8 de junho de 2013

Propriedade privada ou produtiva?

(Por Jadir Mauro Galvão)
Rousseau apontou a propriedade privada como sendo o fator preponderante para a origem das desigualdades entre os homens. Em seu discurso homônimo ele diz:

O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: "Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém !"

Sua linha geral de pensamento, não exatamente esse, mas, sobretudo a questão da liberdade, igualdade e fraternidade, exerceu profunda influência na Revolução francesa, e esta tem sido marcada por muitos como a data de nascimento do nosso atual estilo de vida: o capitalismo. Por outro lado, creio que foi exatamente esse pensamento que estimulou Karl Marx a questionar a legitimidade da propriedade privada. Mesmo Proudhon deve ter sido tocado por Rousseau quando afirmou: “A propriedade privada é um roubo.”. E disso nasceram as ideias de comunismo e de socialismo. Na primeira pensa-se que a propriedade é comum, isto é, de todos, na segunda, a propriedade é do Estado que a dispensa ao seu critério para todos. Contudo talvez se tenha lido apressadamente a ideia de Rousseau. Ele nos fala que os frutos da propriedade são de todos, mas que a terra não é de ninguém. O problema não está na ideia de privado, mas mesmo na ideia de propriedade.
Por outro lado, uma vez que instituiu-se desde há muito tempo a ideia de propriedade privada e esta se entranhou com tamanha força em nossa consciência e, tendo muitos realmente trabalhado com esmero e afinco no intuito de obter propriedades, creio que não seria justo mudar radicalmente as regras do jogo e confiscar propriedades indiscriminadamente. Por outro lado, lembro-me de ter lido sobre uma pesquisa – só não lembro onde - a respeito do déficit habitacional na cidade de São Paulo. A pesquisa dava conta de que “não havia déficit”. A demanda reprimida por imóveis poderia ser atendida apenas pela mesma quantidade de imóveis que hoje estão “fechados”.
De fato, circulando pelas ruas da cidade vemos uma enorme quantidade de imóveis com placas de “vende-se”, “aluga-se” e mesmo outros tantos abandonados. São imóveis residenciais e também muitos comerciais que enfeiam a cidade sendo pichados, depredados, servindo de esconderijo - e não moradia - para desocupados ou mal-intencionados. São imóveis que poderiam estar servindo de “Lar” para muitas famílias, ou mesmo gerando trabalho, renda, oportunidades e serviços para uma boa parcela da população. Contudo estão fechados prestando verdadeiro desserviço a todos.
Nesses casos, penso que poderíamos ao menos “atualizar” a ideia de propriedade privada. Se houve, a custa de algum empenho e dedicação, a aquisição privada de determinada propriedade, ela não pode eximir seu proprietário de novo e reiterado empenho e dedicação no sentido de mantê-la. Neste caso poderíamos repaginar essa ideia num conceito de “Propriedade produtiva”. Para que se tenha e se mantenha uma propriedade privada ela deve ser, de algum modo, produtiva, isto é, prestar algum benefício para a sociedade, em parte ou como um todo. Propriedades fechadas, depredadas, poderiam, então, ser confiscadas e entrar em licitação para que voltassem a ser produtivas. Abrigar alguma família, tornar-se uma pequena fábrica ou empresa de prestação de algum serviço para sociedade.
Eu mesmo conheci diversos pequenos e até médios empreendedores que esbarravam na questão de local. Ou não deram apropriados ou caros demais, inibindo, assim aquilo que poderia ser a geração de emprego, renda, dignidade e progresso para inúmeras pessoas de bem.

Claro que não podemos fazer vista grossa para o fato de que, se muitos imóveis estão em estado tão desleixado, não é por mera vontade ou puro desleixo de seu proprietário, mas talvez, muitos demonstrem alguma sazonal crise financeira, mas a ideia de propriedade produtiva não se inviabiliza por esse fator. Pelo contrário, estimula um saudável desapego, tanto quanto o trabalho. Aquele que “perdeu” determinado imóvel pode, num segundo momento, “ganhar” outro e zelar para que ele preste tanto serviços à população quanto também colabore para embelezar a cidade e inibir a criminalidade. 

terça-feira, 23 de abril de 2013

Sobre corrupção e distância.


Hoje vivemos o momento da Lei da ficha limpa, da execração de políticos corruptos. Por outro lado, a velha máxima do malufismo do “rouba, mas faz”, talvez ainda não tenha sido ultrapassada. Eticamente, deveríamos execrar a figura do político corrupto ou ele representa uma parcela da população também corrupta e que só não se faz ver devido à falta de oportunidade?
Esta é uma questão que proponho para meus alunos de filosofia e ética. Analisá-la não é tarefa das mais simples. Facilmente caímos em julgamentos prematuros, sem chegar ao cerne da questão. Procuro encaminhar a análise ética pela busca dos valores ou dos princípios que teriam a capacidade de justificar, ou ao menos de nos fazer tolerar a conduta corrupta. Apressadamente cairíamos em algum julgamento do caráter do corrupto e do corruptor, como indivíduos desqualificados, egoístas, mau-caráter, numa palavra: de índole má.
Contudo para que se possa postular uma índole má precisamos dizer que existe um mal que rege esse indivíduo. Isso nos coloca diante de um problema, para lá de complicado. Santo Agostinho já nos disse que o mal é somente carência de bem e, portanto, não existe um mal em si. Então que valor poderia justificar uma conduta desse tipo?
Em nossa sociedade capitalista, sabidamente oferecemos bastante importância para algumas coisas comuns em nossa cultura: lucro, individualidade, acumulação de recursos, dinheiro, sucesso, vitória, prestígio entre outros tantos dos ditos, signos distintivos de nossa época. Aquele que rapidamente aproveita as oportunidades de negócio que estão ao alcance é chamado de esperto. Aquele que usa inteligentemente de argumentos para colocar-se em vantagem em alguma negociação tem sucesso. Quando compramos um produto qualquer, abaixo do seu real valor e vendemos acima, fazemos um bom negócio. Todas essas são condutas socialmente aceitas. Mais do que isso, são completamente legais.
Um bom negócio aqui, um belo lucro lá, uma esperteza acolá e nos sentimos confiantes para arriscar o ganho excedente em transações mais ousadas. Daí a chegar ao nível das grandes oportunidades, aquelas que nos recompensam com polpudas boladas é só uma questão de tarimba e sangue frio. Diferenciar a estreita e quase invisível linha que separa o grande negócio do negócio ilegal é tarefa das mais complexas. Mais ainda, quando pelo receio de sermos desonestos não fechamos algum grande negócio e vemos que um outro qualquer, sem titubear, ganhou a bolada sem o menor risco e ficamos com a cara de bobos. A feição de corrupção parece que vai se atenuando à medida que vamos nos habituando e indiferenciando o arriscado do desonesto. A corrupção parece ter cara mais feia quando vista de longe. Quando vista de perto ela se assemelha ao sucesso, ao arrojo ou á vitória.
Por outro lado sabemos que, para os cargos legislativos e executivos os políticos são democraticamente eleitos pelo voto popular. Portanto são legítimos representantes do povo. Também sabemos que a maior parte da população não diferencia “denúncias” de corrupção da própria corrupção e também confunde corrupção com intriga da oposição. Acabamos por generalizar: todo político é corrupto. A diferença é que alguns fazem alguma coisa, outros não.
A dificuldade desse cenário é que nele existem as condições perfeitas para a produção de um determinado tipo de “bolor” social. A indigência, a mendicância e a violência. A caridade é bem vista em nossa sociedade, mas não seria necessária se todos tivessem condições dignas de vida. A indigência é subproduto natural da exclusão social. Vemos, ao perambular pelas ruas, pessoas famintas distantes uma parede ou uma porta do alimento. Vemos pessoas com frio a um muro de um abrigo. A solidariedade requer condições propícias para se manifestar e não é no mundo dos negócios. Nesse meio ela é signo de fragilidade.
Basta-nos manter a pobreza a certa distância e a capital em Brasília para podermos protestar contra os malfeitores, assegurar nosso sustento diário e um bom negócio eventual sem sentir enjôo do mau cheiro da indigência.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Sistema capitalista


Há algum tempo venho pensando sobre como será o mundo pós-capitalismo. Muito se comemorou a queda do muro de Berlim. Fato emblemático que permitiu a reunião de pessoas que se mantinham separadas por muros dentro de uma mesma cidade, falando o mesmo idioma, rezando o mesmo credo, mas separadas por ideologias diferentes. As segregações raciais ainda existentes ao redor do mundo parecem também se dissolver pouco a pouco. África do Sul, Iraque, a antiga Iugoslávia... os muros estão sendo derrubados ainda que timidamente. As recentes rebeliões, aparentemente buscando liberdade no oriente médio vêm oferecendo novos contornos ao mundo. Por outro lado, o fim da Guerra fria, também fez acabar com a ajuda mútua entre os países capitalistas. Nós, países em desenvolvimento ganhamos e perdemos com isso. Ganhamos o fim das ditaduras militares, historicamente financiadas pelos países ricos que temiam que o “comunismo” se alastrasse para além da Cortina de ferro enamoradas dos antigos regimes populistas. Ganhamos uma pretensa democracia, novos populismos. O upgrade na categorização de “Terceiro mundo” para “Em desenvolvimento”. Ganhamos uma autonomia para cuidar de nossas próprias contas e controlamos a inflação.
Todavia, o processo de globalização se tornou predatório. Produtores de rúcula, agrião, almeirão e chicória passaram para a monocultura do alface “macdonaldizado”. Bancos de lá e de cá foram engolidos pelos grandes. Empresas de vários ramos de atividade foram tragadas por conglomerados multinacionais com sedes nacionais ou internacionais (pouco importa!), ceifando centenas de milhares de postos de trabalho exigindo que os profissionais se reinventassem ou se tornassem “terceiros”. Por sorte a tecnologia e os cursos tecnológicos surgiram para suprir uma demanda crescente por mão de obra pouco mais qualificada. Ainda que em nossa economia brasileira um progresso represado durante anos possa agora ser experimentado sazonalmente, não podemos nos enganar e confiar que estamos imunes aos sobressaltos das crises econômico-especulativas que fazem muitos ao redor do mundo apertar um ou outro buraco do cinto.
Países inteiros em crise, pois a torrente financeira ascendente que marca a pirâmide social, aliada a incertezas dos mercados. Faz o capital de investimento que poderia irrigar a base da pirâmide descer timidamente e somente como capital especulativo. Recolhendo-se em sua maioria nas mãos privadas dos endinheirados. Essa situação não tem como perdurar por muito tempo. Penso que já sejam observáveis fissuras nas colunas de sustentação do próprio sistema capitalista. Não se trata de qualquer tipo de catastrofismo escatológico, mas de vislumbrar que o próprio capitalismo nasceu em meio a crise similar experimentada em regime ainda essencialmente feudal dando sinais claros de fadiga.
É que a maior parte de nós nasceu, cresceu e viveu mergulhado até o pescoço no capitalismo e, por falta de alternativas emergentes ainda soa epistemologicamente como verdade absoluta. Ledo engano! Peter Drucker nos diz que:

A cada dois ou três séculos ocorre na história ocidental uma grande transformação. [...] Em poucas décadas a sociedade se reorganiza – sua visão do mundo, seus valores básicos, sua estrutura social e política, suas artes suas instituições mais importantes. Depois de cinqüenta anos, existe um novo mundo. E as pessoas nascidas nele não conseguem imaginar o mundo em que seus avós viviam e no qual nasceram seus pais.

Penso que esse limiar de transformação está ocorrendo agora e em breve o capitalismo sucumbirá sendo sucedido por uma nova organização social, uma nova mediação social que não o capital e onde os binômios trabalho-remuneração e produção-lucro serão substituídos por contribuir-usufruir em mesma medida.
As empresas no paradigma atual visam essencialmente o lucro, mas se não houvesse mais o lucro haveria razão delas existirem? Para muitas penso que sim! Uma indústria de alimentos ainda teria um propósito e penso que ainda competiria em qualidade de produto com seu concorrente para que o produto a ser consumido fosse o seu e não o do concorrente. Uma indústria farmacêutica séria deve ter consciência de seu papel social. Mesmo não almejando o lucro penso que a Adidas gostaria de ver seu material esportivo vestindo uma porção de gente e não os da Nike e vice e versa. Modificaria a mediação social.
Hoje a mediação social entre pessoas, empresas ou governo é feita essencialmente por dinheiro. Compramos produtos e se não temos dinheiro (ou cartão de crédito!), não compramos. Moramos em nossas casas, mas apenas se pagamos os impostos para o governo. Chegamos ao absurdo de sequer nos relacionarmos com pessoas se elas não forem, em algum momento, interessantes financeiramente para uma recolocação profissional ou coisa que o valha. Amigos se transformaram de modo chic em network. Nós mesmos com raras exceções so trabalhamos ou contribuímos mediante remuneração (ou outro interesse!). Penso que os dias da mediação pelo capital não sejam longos. Os ares da nova era nos inspiram a superar a mesquinhez. Precisaremos aprender a viver em um mundo novo. Mas penso que teremos mais a ganhar em humanidade do que perder em dinheiro!